Crônicas

José Solon Sales e Silva
Titular da Cadeira Nº 34 - Patrono: Cônego Francisco José Aragão e Silva

Sou antigo. Quando criança, na única casa que tive na vida, a geladeira funcionava a querosene. Havia, bem embaixo, um tanque que comportava um galão de querosene. Um galão é equivalente a 3,78 litros. Esta era a capacidade do tanque de querosene da nossa geladeira.  Para o funcionamento ascendia-se uma manga com pavio e o calor daquela chama alimentava a geladeira a querosene da marca Consul. Um tanque cheio de querosene durava exatamente uma semana.

A geladeira era dos anos 50 pois a Consul é uma empresa brasileira criada em 15 de julho de 1950, na cidade de Joinville, em Santa Catarina. O nome da geladeira foi em homenagem ao Cônsul Carlos Renaux, quem financiou a oficina dos criadores da Consul, Guilherme Holderegger e Rodolfo Stutzer. O posto de Cônsul Suíço em Santa Catarina foi ocupado por Guilherme após a morte de Carlos Renaux.

Iam-se os anos 60 e eu, na condição de filho tinha obrigações domésticas, determinadas por papai. Dentre elas uma era, semanalmente ir ao posto de gasolina, que ficava em frente ao mercado, comprar um galão de querosene para a geladeira. Sempre aos sábados, para não atrapalhar os estudos. Recebia o dinheiro do meu pai, tinha que saber fazer as contas e trazer o troco certinho.

Não gostava dessa tarefa, porque, além de carregar o peso do galão de querosene tinha que dar conta do troco. Nunca gostei de dinheiro. Sempre gostei de gastar. Mas papai sempre dava responsabilidades aos filhos, inclusive financeiras, com o dinheiro dele. Sei que hoje isso chama-se educação financeira o que meu pai fazia com os filhos já nos anos 60. Evoluído, ele, talvez.

Mas, fato era que sempre delegou aos filhos responsabilidades. A geladeira Consul, a querosene, bebeu muitos galões trazidos por mim. Aquele tempo em nossa Ipu não existia energia elétrica.

Lembro-me da inauguração da energia elétrica de Paulo Afonso em Ipu. Nos altos da lateral da casa do Sr. Pedro Tavares, Virgílio Távora discursou inaugurando a “luz”  elétrica no Ipu. Éramos vizinhos de quarteirão do Sr. Pedro Tavares e estávamos, junto ao povo, na rua, presenciando tudo. Meu pai, claro, estava lá em cima. E aí deixei de comprar o galão de querosene todos os sábados. A geladeira a querosene foi substituída por outra Consul elétrica e azul. Horrível, a de querosene era branca. E papai vendeu a geladeira a querosene para um seu cliente da serra. Deveria ter deixado a de querosene conosco, a final existia muito espaço para mantê-la. Pressa, modernidade, aniquilamento da memória.

Hoje, vejo como fui e sou um pai relapso. Nunca deleguei tarefas a meus filhos, nunca ensinei coisas práticas a eles. São modernos, são das gerações Y e Z, dos usuários de intenet, são de tempos que vivo, mas não são dos tempos que vivi. Sou ipuense e ali forjei minha base do ser, do sentir, do querer. Meus filhos também são, sentem e querem. No entanto, nunca chuparam os picolés de abacate feitos por minha mãe em formas de gelo de alumínio, segurados por palitos de dentes e congelados na geladeira a querosene. Coisa boas!!!

Coco, 20/02/2022

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