Crônicas

 

Abílio Lourenço Martins

Titular da Cadeira nº 12 - Abílio Martins

 

 

Os olhos de crianças, sabemos, são puros, veem e guardam com magnitude cristalina, como aves de rapina, os acontecimentos distantes e marcantes.

Fui criança. Faz tempo!

Fui um menino aparentemente sereno, mas perspicaz, de olhos arregalados e grandes, encarregados, estes, de levar ao subconsciente o registro de fatos indeléveis.

Como esquecer, por exemplo, as festas de janeiro?

Recordo-me, com detalhes, daqueles dez dias que antecediam a festa comemorativa ao padroeiro da cidade, o Mártir São Sebastião, celebrada no dia vinte de janeiro.

Naquele período festivo, coincidente com as férias escolares, a cidade ipuense era um burburinho. Estava alegre com a chegada dos filhos ausentes, visitantes, além dos munícipes oriundos dos mais variados distritos e recantos do município. Faceiros, estes chegavam montados nos seus cavalos, burros e jumentos, amarrando-os nos troncos dos pés de fícus, mangueiras, oitizeiros e tamarineiros, espalhados pelas ruas e praças da cidade.

Os meninos, traquinos, desamarravam, aqui, acolá, um cavalo e desfilavam alegres pela cidade, correndo o iminente risco de se depararem com o dono do animal.

No período vespertino, o centro da cidade ia aos poucos recebendo os seus filhos e visitantes para a novena do Santo Padroeiro. Como se procissão fosse, as pessoas se dirigiam à matriz para a celebração da festa religiosa. 

No patamar, a banda do Mestre Marçal as recepcionava tocando o Hino do Mártir, e outros dobrados inesquecíveis.

Ao final da cerimônia, a população se dividia. Uns para a Praça de Iracema; outros, para o mercado. Aqui, as bodegas dos senhores: Afonso, João Afonso, Manoel Rocha e Gabriel já se encontravam literalmente apinhadas dos sertanejos e serranos, bebericando os seus quinados, ajustando a cabeleira com uma tapinha de brilhantina glostora ou Cashmere bouquet, e alguns pingos de loção. Estavam, portanto, prontos para os incessantes desfiles ao redor do mercado, na esperança de concretizar em namoro o flerte do dia anterior.

Enquanto isso, na outra praça, o Leiloeiro “Teté” vendia as prendas paroquianas. Dou-lhe uma, dou-lhe duas, dou-lhe três.

A amplificadora, incessante, tocava os sucessos de Miltinho, Ângela Maria, Waldick Soriano e outros. No intervalo de cada música o locutor mencionava as célebres mensagens apaixonadas e inocentes: “A música seguinte, o José da Várzea do Jiló manda para alguém que está de saia branca e blusa azul”.

Os meninos, vislumbrados, passeavam na roda gigante, carrossel e canoa.

Era essa a rotina diária e inesquecível dos dias 10 a 20 de janeiro, quando se encerrava com uma procissão infinda, a festividade religiosa do padroeiro do município.

A festa social da cidade terminava, igualmente, no mesmo dia. As moças vaidosas desfilavam no Grêmio Recreativo Ipuense os seus vestidos vistosos, longos e esvoaçante, recentemente confeccionados, dançando ao som dos Cometas os sucessos de Glenn Miller, Bienvenido Granda, Ray Conniff, Perez Prado e outros.

(Caso tivesse a chave do meu inconsciente, outras lembranças, certamente, registraria.)

4 de janeiro de 2019

 

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