João Rorigues Ferreira
Titular da Cadeira Nº 18
O sol descambava por trás da Serra da Ibiapaba, e seus últimos raios refletiam nas límpidas águas do Ipuçaba, que preguiçosamente deslizavam rio abaixo formando a majestosa cascata na qual Iracema incontáveis vezes se banhou. Um bem-te-vi saltava de um galho a outro de uma mangueira, como se estivesse apenas se exercitando, ou talvez procurasse um galho seguro onde pudesse repousar durante a noite que se aproximava. O dia, agora agonizante, dava seus últimos suspiros. Um morcego sobrevoou a cachoeira, que cantava suavemente enquanto percorrias as curvas sinuosas do Ipuçaba. Um grilo já cantava intermitentemente. Uma coruja surgiu. Distante, uma gigante bola alaranjada mergulhou por trás da serra.
A noite caiu.
Um vento frio vadiou pelo meu corpo seminu. Sempre gostei dos banhos da bica no fim do dia. Todos os banhistas e turistas já se tinham ido. Apenas eu insistia em permanecer. Uma jaçanã gritou lá embaixo, e seu grito ecoou pela mata silenciosa. O relógio da igreja soou até a sexta batida. A hora do Angelus. Sempre senti medo nesse horário, então me apressei pra ir embora.
Ouvi um leve chiado de folha seca. Minha visão, feito um raio, dirigiu-se em direção ao som e parou em uma figura imóvel sobre as pedras acima da bica. Firmei o olhar. Uma mulher. Iracema? Sim, Iracema! A virgem dos lábios de mel. Sacudi a cabeça. Será que eu tinha bebido tanto assim? Esfreguei os olhos e olhei novamente. Ela já havia saltado lá de cima e, sem pudor – nem mesmo havia uma pena para cobrir suas vergonhas –, passou a banhar-se onde tantas vezes se banhara. Só podia ser em espírito!
Receoso, aproximei-me dela. Não havia outra coisa a fazer. Eu precisava ver se era verdade o que meus olhos me revelavam. Ela olhou para seu arco que havia deitado sobre uma pedra. Recuei. Ela dirigiu-se até ele e, para meu espanto, quebrou a única flecha que trazia. Entendi. Como viera ao mundo, a virgem – até então eu ainda não tinha certeza de sua virgindade – estendeu para mim o licor da jurema. Cerimoniosamente o aceitei. Naquele momento, nem o próprio silêncio, para mim, era tão silencioso. Levei a cuia à minha boca, que continha um licor verde e adocicado. Não me recordo se no livro o licor era doce ou não, mas aquele era tão doce quanto o favo do jati. Bebi um pouco. Devolvi-o a ela, que também bebeu.
Não sei por quanto tempo ficamos ali. Quando dei por mim, Ipu há muito já dormia e eu estava deitado num banco da Praça de Iracema, enquanto a própria Iracema, em carne e osso, ou em espírito, passava seus dedos suavemente no rosto da estátua de Martim. Senti uma pontada de ciúme. Ela pareceu ter notado. Afastou a mão mais rápido do que o disparo de sua seta. Caminhamos até a estação, onde ficamos sentados por algum tempo. Dali, caminhamos de mãos dadas até a Academia de Letras, Ciências e Artes de Ipu, onde curiosamente um exemplar de “Iracema” estava deitado no batente da porta. Ela o folheou. Se o leu não sei, mas seu indicador deslizou por alguns minutos pelas linhas escritas por Alencar. Enquanto seu dedo deslizava, um suspiro forte e saudoso brotou de seu seio.
O livro, ela o deixou onde estava e nos dirigimos à Igreja Matriz. Iracema olhou fixamente o cruzeiro. Suspirou. Saudades de Martim? Não sei. Não ousei perguntar.
Caminhamos novamente. Como dois enamorados, fizemos um tour por quase todo o Ipu, e a lua já despontava no sertão quando chegamos ao topo do Alto dos Catorze, pois queríamos ver a musa noturna reinar. Os raios do luar me abriram os olhos, e quando refletiram nos negros e longos cabelos da virgem, pude perceber que, de fato, eles eram mais negros que a asa da graúna. Seus olhos pareciam duas jabuticabas. Seu corpo era alto e escultural. Não me parecia uma índia. Na verdade só tinha visto índias nos livros de história e na televisão. Ela era muito mais linda que qualquer uma delas. Nem mesmo Alencar conseguira descrever tamanha beleza. Talvez estivesse descrita nas entrelinhas do livro, e bem que eu poderia ter percebido se o tivesse lido mais cuidadosamente.
Melhor assim, pois ali, com a cidade adormecida, sob o prateado do luar, li Iracema capítulo após capítulo, nem mesmo as entrelinhas passaram despercebidas.
João Rodrigues Ferreira