Crônicas

José Solon Sales e Silva

            Essa era a palavra com que se designava um espaço, contíguo a casa, geralmente nos fundos da casa, onde se plantavam notadamente árvores frutíferas. No início, para subsistência, hoje para caprichos “orgânicos”, termo com que se assinala que a plantação é isenta de qualquer inseticida. Pomares, há cinquenta anos, eram espaços de convivência, de encontros de pais com filhos, de plantação e deleite, para somente depois aproveitar o que eram dados por eles. Tudo na mais harmoniosa natureza, sem inseticidas ou coisas semelhantes.

            Tive a grata felicidade de nascer em uma casa onde existia um pomar. A casa tinha fundos contíguos com a rua de trás. Metade do terreno era a casa, a outra metade o pomar. Praça Abílio Martins com fundos para a Rua da Itália. Ah! Que lugar mágico: areia, estrume, plantas, varrição, aguação, protetores para formiga, feitos de barro cozido, pelas louceiras dos arredores de Ipu. Hoje temos Dona Branca, Mestre da Cultura graças à iniciativa brilhante de uma estudiosa, cientista, mulher de cultura erudita, Professora Doutora (para o ego de muitos, mas para mim, mulher de visão) Cláudia Leitão, que instituiu, enquanto Secretária de Cultura do nosso Ceará, esta honraria e reconhecimento do popular ou do popularesco, como querem uns, os fazedores da arte popular, a arte em sua essência, o folclore, o aprender com o outro e o fazer bonito! Esse recipiente onde colocavam água para as formigas não subirem pelo caule e literalmente comerem as folhas e matar as plantas... muito engenhoso!!! Tecnologia milenar, talvez, mas que funcionavam muito bem...

            Fui menino nascido e criado neste afã, pois meu pai me mandava aguar as plantas do pomar. Era uma das minhas tarefas domésticas... Sem discussão, sem por quês, fazer em obediência ao pai e por fim, fazer por prazer. Que lugar mágico! O pomar. Ali passava os finais de tarde puxando água do cacimbão, para aguar as plantas. Plantas de grande porte, pelo menos cinco: duas mangueiras, um limoeiro, velho e enorme, um cajueiro muito grande, uma serigueleira imensa e laranjeiras, pelo menos umas seis. Os mamoeiros eram plantados e replantados frequentemente. Eram tantas as frutas em cada um dos seus períodos, que a família não dava vencimento. Compotas de doce de caju eram feitas para o ano inteiro, ao ponto dos meninos, como eu, enjoarem de comer tanto doce de caju em compotas. O que fazer com o excesso? Fácil. O que excedia de tudo isso era distribuído com os vizinhos.

            No nosso quarteirão, na Praça Abílio Martins, somente quatro casas ou casarões. E pras bandas da Praça da Estação, mais umas três casas. E na Praça da Estação, mais uma casa. E na Rua da Itália, mais umas quatro casas. Ia eu, levar em uma cesta (daquelas fabricadas por artesãs dos arredores do Ipu) mangas, limões, cajus e seriguelas. Eram muitas, as cestas eram pesadas, uma fruta em cada época. Deixei muitas frutas do nosso pomar nas casas do Sr. Pedro Tavares. Na verdade deveria entregá-las a D. Mimosa, da Dona Terezinha, do meu padrinho Antônio José, (meu padrinho de crisma), da Dona Maria Dantas. A Dona Maria Assis (foi minha alfabetizadora). A Dona Maria José, esposa do Senhor Manoel Assis. A D. Luiza, esposa do senhor Souza, do Hotel Vitória. Ao Sr. Vicente Rocha, já na Praça da Estação. A Tia Fransquinha Taumaturgo, na rua da Itália. A Zequinha, do Zé Taumaturgo. Ao Sr. Fransquinho, já na rua que vai pra bica (Padre Correia)... Ufa! Eram muitas entregas... E eu adorava fazer tudo isso.

            Curiosamente, esses vizinhos e amigos também possuíam pomares, e também tinham o hábito de nos mandar frutas da estação. Particularmente amava as mangas princesas mandadas pelo Sr. Fransquinho, compadre de meus pais. Ali sim, era um pomar, que ia até a beira de um riacho que desaguava no Ipuçaba. Que mangas maravilhosas, doces, macias...

            As seriguelas eram especiais para os amigos da minha idade. Abria o portão, muitas vezes escondido de meus pais, para deixar entrar os amigos da minha idade. Quando estávamos nas aulas no Ginásio Ipuense, pela manhã, já combinávamos para o comecinho da tarde. Aí pelo início da tarde, abriria o portão da Rua da Itália e todos estariam lá: Cleiton Soares Vasconcelos, Maurício Paulino, Régis Xerez, Expedito Lima, Chico Rocha, para subirmos no pé de seriguela e comermos até encher a pança... Que tardes maravilhosas! Com essa turma também íamos ao Gangão, chupar mangas, e eram muitas e muitas e muitas que, quando chegávamos à cachoeira, a moleza batia...

            Mas, voltando ao meu pomar. Além das fruteiras já enumeradas, existiam também os pés de ata, em grande número, e as hortaliças. Meu pai presava e amava as cebolinhas, coentro (cujas sementes ele comprava e plantava no girau) e me incumbia de aguá-las e colhe-las. Existiam também os pés de pimenta malagueta (talvez por isso goste tanto de pimenta até hoje). Que mangas doces... Que limões azedos... Que cajus amarelos... Que seriguelas vermelhas (maduras no pé) e doces... Que atas grandes e doces... Sem falar no cheiro dos coentros e cebolinhas que iam às panelas diariamente...

            Importante que se diga: a água, vital àquelas árvores, era retirada por mim, puxando água do cacimbão. Talvez quem esteja lendo não saiba o que é isso e vai ficar sem saber... Pra entender seria necessário ter vivido esse tempo. Hoje acho que chamam esse sistema de captação de água de “cacimba”. Cacimba nada. Cacimba para mim eram os buracos que se abriam nos leitos do rio para captar água. Os cacimbões eram bem grandes mesmo, e a água era retirada de uma altura de uns cem metros ou mais... Pura... Cristalina... Saudável.

            Tenho muita pena de meus filhos, que não conheceram e não tiveram esta vivência, esta oportunidade de ser “menino de recado”, de aguar uma planta, de chupar a fruta tirada do pé. Coitados! Comem cajus comprados em supermercados... Isso é a evolução da humanidade. Hoje não há tempo de esperar a fruta madurar no pé... Hoje se come o que o supermercado oferece. Fui menino de aguar o pomar e fui menino de obedecer meu pai, de receber “ordens” para aguar o pomar. Fui, por fim, menino feliz e privilegiado... Sou homem feito jubiloso por ter tido tudo isso. Um pomar no Ipu!

 

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